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Heterossexualidade Alternativa

Como escapar o heteropessimismo?

By Clara Drummond

Original Portuguese version
  • September 16, 2022
Oil on canvas painting in a bold, modern style. Two naked figures stand so close to each other that the edges of their bodies are indistinguishable. They are up to their knees in a warm-green pond, surrounded by lily pads, two ducks, and a handful of charming insects (though a few have left bite marks on the figures). The closer figure has long wavy black hair that cascades down their back, cuts around their large butt cheeks, and then flows into the water. The painting has an Edenic feel, but also a slight edge.
GaHee Park, Wetland, 2021. Oil on canvas. 72" x 64". Courtesy of the Artist and Perrotin. Photographer: Tanguy Beurdeley.
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Há uma piada recorrente no meu grupo de amigos, composto majoritariamente por homens gays, que eu sou como o Mowgli: a garota hetero que foi criada na comunidade queer que não sabe como se comportar na presença de outros heterossexuais. É algo que me orgulho, gosto de repetir por aí, como se fosse parte fundamental da minha identidade. Eu quero que saibam que na verdade eu não sou uma mulher hetero, eu sou um homem gay. Foi só no ano passado que descobri que meu comportamento fazia parte de uma tendência mais ampla chamada “heteropessimismo”. 

O termo foi cunhado em 2019 por Asa Seresin no ensaio “On Heteropessism,” publicado na revista The New Inquiry. Heteropessimismo é a desidentificação performativa de mulheres com sua própria heterossexualidade, expressa na forma de constrangimento ou sarcasmo. Não à toa, o ambiente mais fácil para encontrar exemplos de heteropessimismo são as redes sociais, em especial o Twitter. É ali que o humor autodepreciativo encontra seu lar. “É ok ser hetero, o problema é se comportar como hetero”, diz uma postagem que lembro de alguns anos atrás.

Seresin argumenta que embora o heteropessimismo tenha o potencial de revolucionar a heterossexualidade, não é isso que acontece. Ao contrário, seria uma força anestesiante que retardaria qualquer mudança significativa. Isso ocorre, acredito, porque as adeptas do heteropessimismo se encontram em uma relação mal resolvida de amor e ódio com os objetos de seus afetos. 

As estatísticas relacionadas a violência sexual e doméstica contra mulheres são assustadoras, e viver com a consciência desses números não é confortável. É preciso ser um pouquinho alienada para se relacionar com leveza com um homem, um luxo na nossa sociedade da informação. 

O comportamento de algumas amigas me parece sintomático desse tipo de confusão. Por um lado, repetem os mantras feministas da moda, expressam ad nauseam seu desprezo pelo patriarcado, em geral nas redes sociais. Mas, em simultâneo, gastam uma quantidade imensa de tempo pensando em homem nos moldes mais convencionais possíveis, além de adequar tanto sua aparência quanto comportamento para agradá-los. E sofrem com isso, esperando o príncipe encantado que será a milagrosa exceção neste mar de toxidade. Quando confrontadas com suas contradições, suspiram, resignadas, que o patriarcado é forte demais para domar a carência pela aprovação masculina. Ou seja, como expressou maldosamente um amigo bastante perspicaz: são mulheres bastante sexistas que assinaram o Netflix feminista. 

Qual sentido de lutar pela equidade de gêneros se o patriarcado é essa instituição imutável? É essa resignação que torna o heteropessimismo uma força conservadora. É preciso acreditar na possibilidade de mudança para que ela aconteça. Segundo a historiadora Hanne Blank, que escreveu o livro Straight: The Surprisingly Short History of Heterosexuality, a heterossexualidade enquanto conceito só passou a ser descrita como tal em 1868, quando a palavra foi registrada pela primeira vez. Károly Mária Kertbeny, um jornalista austro-húngaro, cunhou tanto o termo heterossexual quanto homossexual para protestar contra as leis que proibiam a sodomia na Alemanha.  Ou seja, até então a definição se limitava ao ato sexual, e não ao participante. E tampouco significava uma identidade cultural. 

Se a heterossexualidade é uma cultura, e a cultura é mutável, quer dizer que há esperança. Ainda hoje, é persistente a ideia que a cultura hetero é “natural”, seja lá o que isso signifique. No entanto, podermos perfeitamente aplicar ao universo hetero os critérios que Susan Sontag usou em “Notes on Camp”, como o artifício e o exagero. Festas de casamentos, chás de bebê e despedida de solteiro são um bom exemplo. 

Em 2020, Rosanna Mclaughlin cunhou o termo “Straight Camp” em um artigo para o site da Frieze sobre “Love Island”. Para a autora, o reality show seria uma versão exagerada e distópica da heteronormatividade. Ali, o exagero e o artifício são evidentes, o que torna o programa fascinante para a audiência queer. Afinal, os jogadores dedicam várias horas por dia para manter todos os significantes de beleza e atratividade enquanto, em simultâneo, parecem achar o ato sexual imoral, até constrangedor. É preciso ser um objeto de desejo, mas jamais agir de acordo com seu próprio desejo. Ou seja: sexy, mas não sexual. 

“Love Island” pode ser encarada como uma sátira não intencional, mas os marcadores tradicionais de gênero ainda são bem presentes mesmo em ambientes mais atualizados com os novos modelos da vida. Não fosse isso, seria mais fácil para as mulheres adotarem uma práxis verdadeiramente feminista. O heteropessimismo perde quase toda sua força fora de contextos heteronormativos. Por hoje, não podemos abolir o heteropatriarcado, mas podemos encontrar nichos, ilhas, frestas. Não é fácil, mas ali o ar é puro e podemos respirar. 

Ano passado, no aniversário de uma amiga de faculdade, em um apartamento com uma dúzia de adultos e várias crianças, fiquei alguns minutos observando o flerte entre dois convidados que conversavam encostados na parede. 

“É tão engraçado assistir flerte de hetero, não é?”, comentou meu amigo. 

“Pois é… Eu também sou assim?!”, perguntei, levemente alarmada. 

“Clara, é obvio que não, você é o tipo de pessoa que faz sexo oral no banheiro da festa.” 

É uma anedota boba – não acho que represente nada de revolucionário em 2022 – mas sintomática. De fato, há uma década que me movimento fora dos contornos da heteronormatividade: quase não vou a dates, tenho algumas relações longas, mas meramente sexuais (embora sempre com honestidade e respeito, qualidades fundamentais em um fuck buddy). E, sobretudo, não pretendo casar nem ter filhos.

Nesses anos, já fiz uma coisa ou outra com garotas, sempre muito esporádico, talvez um pouco além do que seria retratado em uma canção da Katy Perry. Eu sou uma boa leitora de estudos de gênero, portanto sei que embora a sexualidade seja fluida, tampouco é uma escolha racional. Seresin mesmo admite em seu texto que o lesbianismo político que fora moda durante o feminismo dos anos setenta hoje é considerado uma opção um tanto datada.

Ironicamente, a minha proximidade com uma comunidade de homens gays reafirma minha heterossexualidade. Afinal, pau é um assunto recorrente (o tamanho, a grossura, o formato). Dessa forma, minhas narrativas sexuais passaram a ser cem por cento falocêntricas. Eu não converso sobre minha vida sexual com a mesma riqueza de detalhes com minhas amigas mulheres, sobretudo aquelas com vivências mais tradicionais. O entusiasmo pela genitália masculina não condiz com os ditames da feminilidade clássica. Não é educado. 

Há uma citação da bell hooks que me ajudou a entender o estranho espaço limiar que ocupo: “queer not as being about who you’re having sex with (that can be a dimension of it); but queer as being about the self that is at odds with everything around it and has to invent and create and find a place to speak and to thrive and to live.” Portanto, acho que uma saída prática para o heteropessimismo é mimetizar algumas estratégias sexuais e afetivas da comunidade queer. 

Em Minimizando o Casamento, a filósofa Elizabeth Brake cunhou o termo amato-normatividade para definir a priorização dos relacionamento românticos e monogâmicos em detrimento dos demais relacionamentos interpessoais, como a amizade. A amato-normatividade é essencialmente heterossexual. Na comunidade queer, o conceito de chosen family representa uma alternativa para aqueles que não só foram rejeitados por seus progenitores mas também não podiam estabelecer uma família nuclear tradicional (afinal, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo é um tanto recente). 

A amato-normatividade é prejudicial para que as mulheres possam por em prática a sororidade – que, embora seja um termo popular no léxico feminista, não é tão comum na vida real. No universo heterossexual, a mulher solteira é tratada com condescendência uma vez que um parceiro não é apenas o objeto do amor romântico, é um símbolo de status. A mulher solteira tem sua vida escrutinada; perguntam, sem cerimônia, sobre a sua vida sexual. Já a mulher casada tem direito à privacidade, que nem sempre é tão benéfica quanto parece: não sabemos se transa, se não transa, se é tratada com respeito, se as tarefas de casa são delegadas exclusivamente a ela, se sofre abuso ou violência doméstica. Há um pacto de silêncio entre mulheres casadas que gera isolamento e, portanto, favorece o patriarcado.

Assim, faz sentido que a sororidade seja abandonada toda vez que ocorre um triângulo amoroso entre duas amigas e um homem. A amizade é descartada porque não traz as mesmas recompensas simbólicas que o romance. Nos filmes, em especial aqueles direcionados para o público feminino, aprendemos que no romance é que está o tempero da vida, as grandes emoções, as histórias memoráveis. Na vida real, o estigma vai além do eventual desconforto em situações sociais, já que outros tipos de relação não recebem as mesmas proteções legais que o casamento. A pessoa solteira é literalmente uma cidadã de segunda classe.

Desse modo, a verdadeira sororidade só será possível quando hierarquizarmos os diferentes tipos de relações interpessoais de modo mais horizontal. A teórica Eve Kosofsky Sedgwick sugere em seu livro A Dialogue on Love um novo olhar sobre relacionamentos platônicos que eu considero bastante atraente: “Oh, right, I keep forgetting, for lots and lots of people in the world, the notion of “falling in love” has (of all things) sexual connotations. No, that’s not what I think is happening. For me, what falling in love means is different. It’s a matter of suddenly, globally, “knowing” that another person represents your only access to some vitally transmissible truth or radiantly heightened mode of perception, and that if you lose the thread of this intimacy, both your soul and your whole world might subsist forever in some desert-like state of ontological impoverishment”.

Os meus relacionamentos com homens heterossexuais ficaram substancialmente mais leves e saudáveis depois que percebi que grande parte da minha reserva afetiva está nos meus amigos, que são a minha família. É possível encontrar modelos alternativos a fim de redirecionar nossas demandas afetivas, românticas e sexuais. 

No início do ano, eu escrevi um artigo para a versão brasileira da Marie Claire sobre mulheres que usam Grindr. Para isso, eu fiz um perfil no aplicativo, escolhi uma foto de corpo e rosto, e informei que eu era uma mulher cisgênero e heterossexual. Foi uma surpresa a quantidade gigantesca de mensagens que recebi de homens interessados – afinal, no aplicativo há também bissexuais. As garotas que eu entrevistei para a reportagem normalmente faziam parte da geração z, e buscavam ali sexo casual, sem as burocracias do Tinder ou Bumble. 

É uma estratégia radical que não faz sentido para aquelas que são menos sex positive. Eu mesmo não me adaptei a esse esquema, e não uso sequer os aplicativos tradicionais. Por agora, o encontro sexual é ainda muito importante para mim, pois acredito que uma conexão muito rica pode ocorrer entre dois corpos, mesmo que as almas não desenvolvam uma relação subsequente. As minhas amigas heterossexuais que também rejeitaram os modelos heteronormativos adotaram o vibrador como solução para atingir orgasmos. Nós sabemos que é muitas vezes é mais garantido resolvermos essa questão sozinhas que com um homem. É uma grande vitória para qualquer ser humano quando passamos a ter prazer em estarmos só.

É comum eu ter saudades de estar comigo mesma. Eu descarto programações para ficar sábado à noite em casa apenas com meus pensamentos. Também vou jantar sozinha num restaurante chique quando estou com vontade de comer determinado prato. Minha prioridade é estar onde eu quero estar. Tem vezes que é uma maravilha fazer sexo casual ou dançar até amanhecer. Outras vezes, não, e assim que eu percebo que não quero estar naquele lugar, volto para casa sem sentir culpa. 

Recentemente, a Psychology Today publicou um artigo que faz referencia a um estudo que demonstra que o aumento expressivo de homens solteiros e solitários uma vez que as mulheres passaram a ser mais exigentes com seus pares. O mesmo artigo aponta que homens normalmente são mais felizes e saudáveis quando estão envolvidos com uma parceira. No entanto, eles não têm as habilidade emocionais suficientes para um comprometimento a longo prazo. Em paralelo, mulheres estão se tornando cada vez mais confortáveis em ficarem sozinhas. No Reino Unido, as mulheres solteiras e sem filhos são o subgrupo mais feliz entre a população inglesa, segundo a Paul Dolan da London School of Economics. 

Não acredito em iniciativas individuais para combater uma estrutura desigual – digo isso como alguém que parou de reciclar o lixo depois que li sobre as viagens aéreas de três minutos do clã Kardashian. Na macropolítica, não há motivos para ter esperanças, dado o imenso retrocesso relacionado aos direitos das mulheres. Não irei viver o suficiente para testemunhar uma igualdade de gêneros na sociedade que torne o heteropessimismo obsoleto. Mas ainda temos alguma agência sobre nossa política pessoal. Assim, com alguns métodos paliativos, talvez seja possível, ao menos, sair da inércia e da resignação, encontrar ilhas onde a heteronormatividade não é a força dominante, fortalecer uma comunidade com valores afetivos em comum, rumo a uma possível mudança.

 

Maria Clara Drummond is a Brazilian writer and journalist currently based in Lisbon. She is the author of A festa é minha e eu choro se eu quiser and A realidade devia ser proibidaRole Play is her third novel.
Zoë Perry’s translations of contemporary Brazilian literature have appeared in The New Yorker, Granta, and The Paris Review. She is a founding member of The Starling Bureau, a literary translators’ collective, and was selected for a Banff International Translation Centre residency for her translation of Emilio Fraia’s Sevastopol.